CATREVAGE
Uma boa surpresa...essa é a primeira frase que me vem a cabeça quando penso em “Catrevage”. Uma conjunção de fatores positivos e um sólido trabalho de equipe se anunciam logo nos primeiros contatos com o espetáculo do Grupo Andanças, companhia e dança vinculada ao SESC Caruaru. E muito poderia ser dito das vantagens e facilidades que um grupo, de alguma forma institucional como esse pode ter. Porém, é válido ressaltar, que o fato de dispor de alguns recursos não quer dizer que tais benefícios serão bem aproveitados e também não quer dizer que esse tipo de organização não enfrente outras dificuldades e desafios. Sabemos, por exemplo, que atuar em lugares em que a profissionalização em arte ainda não é uma realidade plena, faz com que a rotatividade de elenco seja um grande obstáculo. Quando os bailarinos estão falando a mesma língua e participando de um processo mais aprofundado de pesquisa criativa, muitos são obrigados a abandonar o grupo para seguir outra carreira profissional. Contrariando essa realidade, os dez bailarinos de “Catrevage” parecem partes de um mesmo todo, versos independentes de um mesmo poema. Tentando imaginar o percurso do Andanças até gerar “Catrevage”, vejo o primeiro passo certo na escolha de Mestre Galdino como tema. Às vezes em nossa busca criativa vamos buscar referências tão distantes, olhar tanto para longe, que não percebemos a riqueza do que está tão próximo. Eles perceberam isso, e, dirigidos por Benício Júnior, parecem ter mergulhado juntos na vida e obra desse artista tão genial. Pelo menos é essa a impressão que nos invade ao vermos os vários corpos dos bailarinos formarem um só corpo em cena.
O espetáculo se inicia do lado de fora do teatro com uma cena que remete à relação quase divina entre criatura e criador e, especificamente, entre Galdino e suas invenções de barro. Simbolicamente o fogo é utilizado para unir os dois bailarinos neste momento. Um dos grandes méritos do trabalho é conseguir se afastar dos riscos de uma linguagem mimética ou caricaturada. A movimentação adotada privilegia a fluidez e a sinuosidade do barro sendo moldado, mas há espaço também para totens representativos das típicas figuras carrantescas e o surrealismo popular de Galdino. Algo entre o sonho e o fantasmagórico se faz presente em seqüências em que os bailarinos interagem com os painéis do eficiente cenário criado por Jorge Souza, evocando o processo criativo e a própria figura do Mestre, reproduzida nos óculos e figurinos assinados por Íris Brenda, nos “tamboretes” usados como instrumentos de percussão. “Catrevage” acerta quando foge do caminho mais fácil de escolher músicas conhecidas e convida Edson Pedro para compor uma trilha sonora original, pontuada com trechos de depoimentos de Mestre Galdino. A luz de Alex Deplex ajuda a aumentar a carga dramática de alguns momentos, oferecendo um contorno especial às cenas.
Coisas misturadas, ligadas: essa era uma possível definição de Catrevage nas palavras de quem criou e tanto divulgou o termo, Galdino. Corpos se moldando e dando vida a formas surreais, simples e complexas como a alma do artista-tema: assim é o espetáculo Catrevage, uma perfeita tradução em dança de vida e obra de Mestre Galdino, uma leitura contemporânea da arte popular. O espetáculo do Grupo Andanças, do SESC Caruaru, prova que, apesar de todas as dificuldades, com um trabalho de pesquisa aprofundado e realizado coletivamente, além de um investimento proporcional na formação artística do elenco e na profissionalização da produção, é possível alcançar a tão desejada verdade cênica.
ESBÓRNIA
Também na Cia de dança do SESC Petrolina é notória a unidade do grupo, o sentimento coletivo guiando cena e bastidores. Dirigido e coreografado por Jailson Lima, Esbórnia traz o exagero como mote central. O humor, a sensualidade, a diversidade, as cores...tudo é propositadamente demasiado. Aliás, o riso também é abundante na platéia durante a primeira parte do espetáculo, ambientado em um cabaré popular, com suas danças, relações, e caricaturas peculiares. Talvez um tratamento menos estereotipado dos personagens pudesse resultar melhor ou dar um viés menos óbvio em termos de composição coreográfica. O investimento nas cenas de humor poderia trazer um diferencial, e maior originalidade ao trabalho, afastando-o do risco do lugar comum. Aliás, a escolha da trilha sonora é mais que adequada em ambas as partes de Esbórnia.
Vemos os mais variados corpos em cena, e, deles Jailson Lima consegue extrair com maestria os melhores atributos. Além do respeito à diversidade, a Cia de Dança do SESC Petrolina, contribui com a desmistificação do corpo ideal ou a existência de um corpo padrão para a dança. Há também um nivelamento técnico entre todos os integrantes da companhia, que parecem ter uma formação muito parecida, mas preservando suas subjetividades. Uma atenção maior ao acabamento dos movimentos e frases coreográficas, além do já referido investimento no caráter humorístico aumentaria, e muito, o encanto do espetáculo.
A segunda parte de Esbórnia, porém, abandona o humor, a estética do escracho e aposta em uma sensualidade mais sóbria e elegante, embalada adequadamente nos tangos de Piazzola. Para mim, ali se inicia um novo espetáculo, apesar de ligados pela intenção da sensualidade, são outros os questionamentos e o discurso que vem daqueles corpos. E nessa segunda metade de uma Esbórnia mais bem comportada, mais contida, limitações técnicas ficam evidentes. A virilidade masculina que o tango exige é um ponto a ser desenvolvido e os trabalhos dos casais necessitam de uma integração maior, uma cumplicidade mais expressiva. Temos pauta e material suficiente para dois espetáculos distintos e, por isso, Esbórnia merece uma pesquisa mais ampla em uma das vertentes eleitas, para conseguir maior primor técnico e melhor interpretação. Conjugando essa equação e decidindo-se por um dos dois caminhos abertos, o trabalho da Cia de Dança do SESC Petrolina tem tudo para continuar uma trajetória de crescimento e sucesso.