Navegando na TRAVESSIA do Grupo Grial

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  • terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
  • por
  • Chris Galdino
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  • Crédito das fotos: Marcelo Lyra

    Viajei... e confesso desde já que fiquei mareada, mas neste caso o enjôo não foi ruim, instalou em mim uma saudável embriaguez de memórias, de um passado tão presente sempre e que não parece ser só meu. Naveguei além-mar para re-conhecer um tecido de afetos tão próprio, habilmente costurado no vocabulário regional e universal, no entrelaçado de tradições e contemporaneidade do Grupo Grial. Da subjetividade de cada corpo, carregado de histórias e formação distintas, a coreógrafa Maria Paula Costa Rêgo conseguiu construir um “côro” uníssono sem tentar apagar as individualidades preciosas de cada intérprete (ainda bem!), como se se tratasse de um mesmo idioma, que mantém seus sotaques diferentes, mas fala a mesma língua.
    Embalados pelo doce e forte canto de Nice Teles (cantadeira popular de Condado, município da Zona da Mata Norte de Pernambuco), os bailarinos ampliados e duplicados em sombras tornam-se cenário em movimento nos painéis que compõem a arena criada pelo diretor de arte Dantas Suassuna, e realçado pela luz precisa e delicada de Luciana Raposo; antes de aparecerem em carne e osso para entrar nesta embarcação onde junto com o público navegam ao sabor dos ventos. Os traços dos grandes painéis nos lembram pinturas rupestres (e/ou também poderiam ser iconografia típica armorial) o que nos remete a um encontro com a ancestralidade, a particular-individual, e a coletiva; a nossa e a da própria dança.
    Miscigenação, mestiçagem, mistura, polissemias e poligamias: palavras (tão brasileiras, não é?) que se repetem, se tecem e se moldam em formas dançantes a cada cena do novo trabalho do Grupo Grial, “Travessia”. Imagens que se multiplicam, trazendo memórias às vezes desfocadas, às vezes até nítidas demais; às vezes nostalgia, às vezes ameaça de um banzo fatal. E quando notei, já me sentia navegadora dos longícuos séculos dos descobrimentos, para alguns minutosdepois, sofrer nos tumbeiros da escravidão...e haja travessia! Dentro da embarcação-arena-cenário fiz não uma, mas muitas travessias, enredada no mosaico multiétnico que formou o povo brasileiro. Das referências lusas mais evidentes aos toques árabes e ciganos, passando pela forte presença afroameríndia, a trilha de Publius Lentulus e Claudio Rabeca, parecem sair dos corpos dos bailarinos, tal é a perfeição do encaixe entre música e dança. A consultoria artística de Conrado Falbo, músico e pesquisador, e do ex-bailarino do grupo Eric Valença, devem ter colaborado bastante com esse resultado coerente e coeso. Uma união que não significa homogeneidade, pois o realce das diferenças que enfatiza o diálogo tradição-contemporaneidade é a base do trabalho desta companhia pernambucana, fundada há mais de 13 anos. Quando trazem à cena a "véia do bambu", figura do cavalo-marinho, ou dançam ´juntos um coco de roda, talvez evidenciem as matrizes populares nordestinas que alicerçam a pesquisa da companhia, mas a consolidação desta linguagem híbrida já conseguiu uma tal fusão entre os elementos populares e eruditos, que é impossível isolá-los. Então não faz muito sentido insistirmos neste debate dicotômico, assim como não vale a pena tentarmos enquadrar em uma categoria o trabalho do Grupo Grial, a dança por eles tecida tem singularidades inclassificáveis. O Grial tem uma alquimia peculiar e única, um jeito próprio que vem desenvolvedo de fazer novas combinações coreográficas, mas manter o trânsito tradição-contemporaneidade como eixo, experimentando novas possibilidades (inclusive de formato das apresentações) a cada espetáculo.
    Cada elemento da obra, incluindo aí cada artista, são multifuncionais: bailarinos e cantadeira são cenário também, cenários transformam-se em figurino (assinado por Andrea Monteiro); luzes que fazem figurinos dançar... Tudo é grande, desde a estrutura, ao gestual e a emoção transbordada. A sensação de cumplicidade e aproximação talvez venha da simplicidade da contação de histórias, mas também encontro elos de ligação possíveis com a poética e a movimentação de outro espetáculo do repertório do Grial: “Uma mulher vestida de sol- Romeu e Julieta”. Talvez os muitos momentos em que dançam casais, talvez o tema comum às histórias contadas, contadas e dançadas pelo elenco- o amor- tenham deixado em mim essa impressão de uma retomada, ou melhor dizendo, de uma reinvenção de si mesma que Maria Paula operou com maestria na sua “Travessia”, fazendo o grupo ser outro (aliás o elenco novo e muito bom é formado pelos intérpretes-criadores: Aldene Ferreira, Dayse Marques, Fábio Soares, Iara Campos, Iara Sales e Joab Jó) e reforçando, ao mesmo tempo, os marcos identitários do Grial.
    Travessia é a segunda parte de uma trilogia proposta pela companhia e chamada “Uma história, duas ou três”, mas muitas são as narrações presentes e as interpretações possíveis. Romances e pelejas tipicamente nordestinos, dores e amores que nos soam tão familiares são contados na dança do Grial, em desenhos coreográficos que exploram o espaço externo e interno, em entradas e saídas da arena que nos fazem dançar também, talvez isso justifique a minha confessa embriaguez, saborosa mareação poética.
    Tocam os sinos anunciando o fim da oceânica “Travessia” ou seria um sinal sonoro para despertar do transe viajantes mais desacostumados? Não sei. Terra à vista- pensei e quase gritei- e fomos nós quem fizemos a descoberta- viva! E olha, a terra é alegre, e parece bem produtiva. O espetáculo termina. E a festa parece estar só começando. Ainda mareada, sigo digerindo e celebrando o encantamento desta viagem na Nau milenar e futurista do Grupo Grial.


    3 comentários:

    Fernando Farias disse...

    Lindo blog e com bom conteúdo.
    Paz

    Colcha de Retalhos disse...

    Preciso me comunicar com Marcelo Lyra e Laura Tamiana. Como faço?
    Obrigado,
    Ismael Gaião

    BarbaraMuglia disse...

    Oi, Chris! Como primeiro texto seu que estou lendo, posso dizer que GOSTEI! rs
    Gostei da forma como você escreve e descreve o que seus olhos viram e o que seu corpo sentiu ao ser e estar presente em cada cena do trabalho de Maria Paula, nas memórias ancestrais que, possivelmente, foram trazidas à tona pelo espetáculo. Ai, que vontade de assistir, de presenciar isso! Beijos, Barbara Muglia

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