FORMAS E MOVIMENTOS DE UMA DANÇA EM CONSTRUÇÃO- EUS e CARDÁPIO DO CORPO

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  • domingo, 29 de maio de 2011
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  • Chris Galdino
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  • O contato com a realidade da dança durante a Mostra Rui Limeira Rosal de Teatro e Dança, organizada pelo SESC Pernambuco, realizada no Teatro Rui Limeira Rosal, na unidade do SESC, em Caruaru, me levou para zonas de tensão recorrentes quando o assunto é o fazer artístico nas cidades de interior do Brasil e, especificamente da Região Nordeste. Fala-se muito há alguns anos em interiorização das ações da cultura, em descentralização e democratização do acesso às artes. Mas apesar desses itens serem praticamente obrigatórios nos discursos dos gestores culturais em todas as instâncias da esfera pública ou privada, ainda existe um abismo imenso entre o que é dito e o que é feito. E vários são os fatores que contribuem para esse distanciamento entre discurso e prática. Olhando os espetáculos apresentados na mostra, voltei á discussão sobre o que é ser um profissional da dança, um artista? Quantos daqueles intérpretes vivem de sua arte? Quantos realmente encaram a dança como profissão? Ao que parece, uma espécie de mensagem subliminar ainda dita as regras e faz com que a prática da dança seja considerada majoritariamente como um hobby, um passatempo, e, isso justificaria o rótulo de atividade supérflua e elitista, “que não pode ser profissão de ninguém”. A informalidade do setor contribui diretamente para esse não-reconhecimento do artista como um trabalhador. E o reflexo disso infelizmente passa quase sempre para a cena.

    Outra questão relevante é uma ansiedade criativa, que deve estar associada às poucas possibilidades de apresentação, que afeta a maioria dos grupos, companhias e artistas independentes das cidades de interior. Parece que a lógica dos festivais de finais de ano das academias, que era praticamente a única forma de praticar a dança na década de 80, ainda guia muitas produções atuais, infelizmente. Por isso, vemos um excesso de informações, como se houvesse uma necessidade de mostrar em um único espetáculo tudo que se sabe fazer, todos os conhecimentos adquiridos, todas as idéias. E, nesse caso, mais acaba sendo menos. A técnica dos tantos anos de formação em dança, que poderia colaborar no processo criativo, estar a serviço de um conceito ou linha dramatúrgica, acaba por assumir apenas um caráter demonstrativo.

    Os coreógrafos, bailarinos e produtores do interior alegam, com razão, que faltam incentivos, investimentos, e políticas públicas de cultura, além de espaço e eventos para apresentarem seus trabalhos. Mas por outro lado, a maioria ainda não aprendeu e/ou não se habituou a acessar os mecanismos de fomento e editais que existem, ficando ainda na dependência do apoio de microempresários da região, amigos, parentes e investimentos próprios para produzir seus espetáculos. Não tenho dúvidas de que as várias instâncias governamentais são diretamente responsáveis por essas ausências e o estabelecimento desse cenário pouco promissor. Mas também é verdade que além da persistência (que felizmente já é uma característica dos que tentam fazer da arte uma profissão no Brasil), a organização coletiva e a mobilização são estratégias urgentes, e mais que necessárias para transformar essa realidade e promover o desenvolvimento da dança nas cidades do interior. Isso tem tudo a ver com formação e informação, uma busca que deveria ser constante e ininterrupta para todos os que pretendem encarar a arte como profissão. O SESC Pernambuco tem desempenhado um papel fundamental, abraçando a missão de ser espaço de formação, difusão e desenvolvimento da dança ao mesmo tempo, e seguindo uma política que incentiva a autonomia dos artistas e grupos, sem criar vínculos de dependência e exclusividade.

    Ainda que instável, o mercado artístico existe, e a economia da cultura é uma realidade palpável, mas tudo começa com uma mudança de atitude que, por sua vez, se inicia em uma auto-avaliação. E algumas perguntas podem ajudar nesse exercício: O que é ser um artista profissional? Eu sou um artista profissional? Como e quanto eu invisto na minha formação e/ou do meu grupo? O que conheço das leis de incentivo e mecanismos de fomento à cultura? Já consigo acessá-los? Quem são meus pares, como estão trabalhando, o que estão produzindo e como posso me articular, interagir com eles? Como posso colaborar com o desenvolvimento e a profissionalização da dança na minha cidade?

    As respostas, e o debate sobre essas questões podem apresentar pistas importantes e imprescindíveis para a construção de um novo cenário na dança produzida nos interiores do Brasil, porque talento e inspiradoras riquezas culturais não faltam por estas bandas.

    EUS

    O feminino se anunciava como tema a todo instante nos momentos iniciais desse espetáculo dirigido por Sheila Karina Amorim e Leila Cristina Silva, desde o vídeo que antecedia as cenas, mostrando relatos de mulheres, porém depois essa sugestão se diluiu no excesso de informações inserida no enredo. Com notória técnica de dança clássica e moderna, as quatro bailarinas criadoras recitaram alguns trechos de poemas de Demóstenes Félix. Talvez uma pesquisa mais aprofundada no material literário daquele autor ou uma forma menos impostada de dizer os poemas, pudesse resultar em uma conexão mais eficaz e impactante entre movimento e palavra. Da maneira como foi concebida a montagem, os textos não apresentam ligação visível com as coreografias, assinadas pelas duas diretoras e por Luís Roberto Silva.

    A já referida ansiedade criativa faz de EUS um espetáculo confuso, são tantas as narrativas apresentadas que acabamos por não saber qual é realmente a proposta, o que é que está em questão? Cenografia e elementos cênicos interessantes como as portas das seqüências iniciais perdem um pouco de significado quando, pela repetição excessiva, deixam de surpreender. Nós já supomos o que vai acontecer a seguir. Talvez o fato do grupo ter tido pouco tempo de montagem (dois meses), tenha contribuído no resultado ainda inconsistente em termos de discurso, que foi apresentado.

    A performance ganha força na bela e sincronizada seqüência em que a música é tocada ao vivo pelo percussionista David Leal. A escolha acertada do figurino- longas e rodadas saias tricolores- ajuda a fazer dessa coreografia o ponto mais marcante do trabalho. Nesse e em vários momentos tive a impressão de estar vendo um novo espetáculo se iniciar, já que tantas foram as idéias colocadas em cena, e que ficaram sem desenvolvimento. EUS tem várias células coreográficas, mas não consegue ainda criar um fio condutor. Talvez se não houvesse uma separação tão evidente entre as seqüências coreográficas e a movimentação tivesse um caráter mais naturalista, com atenção especial para as entradas e saídas de cena, que como foram organizadas quebram o ritmo, estancando a dinâmica do espetáculo, EUS pudesse causar um impacto mais positivo no público. Colocando o alto nível técnico dos intérpretes a serviço de uma dramaturgia, de um processo de pesquisa, o espetáculo poderá alcançar, sem dúvida, resultados mais consistentes, aproveitando melhor o poder encantador, inerente aos bailarinos do elenco (Adriana Borges, Leila Cristina Silva, Marcos Mercury, Sheyla Karina Amorim e Vânia Amorim), todos com visível formação em dança.

    CARDÁPIO DO CORPO





    Preciso começar dizendo que uma intervenção urbana de dança contemporânea é um artigo raro e nada habitual na capital do forró. Por isso a ousadia é de cara um ponto a favor do trabalho, criado e interpretado pelo bailarino Marcos Mercury, e pensado para espaços não convencionais. Criar essas brechas é uma urgência para ampliar as possibilidades de diálogo entre tradição e contemporaneidade, entre os artistas e os demais sujeitos.

    Apresentado na Praça do Marco Zero, centro de Caruaru, a performance começa a acontecer antes ainda da apresentação propriamente dita ser iniciada. O fator interatividade é vivenciado desde a montagem do cenário, luzes e mini palco. A aglomeração de pessoas movida pela curiosidade modifica significativamente o local e o cotidiano habitual do centro da cidade, integrando provisoriamente a paisagem urbana, alterando-a, inaugurando novas relações entre a arte e o cidadão comum. Esse é o grande trunfo de “Cardápio do corpo”. O público é convidado a interagir com a obra a todo instante e, mesmo os que optam por não escolher as músicas no menu oferecido por um ator-garçom do elenco, participam ativamente, assistindo e reagindo de alguma forma às provocações do bailarino, que chega a se aproximar ainda mais dos espectadores em alguns momentos da encenação. Quando o “Cardápio do corpo” se abre aos nossos olhos, a imaginação voa e muitas são as leituras possíveis.

    A primeira vista, saltam da cena questões acerca da liberdade de expressão, da relação entre a arte e o belo, e das condições e funcionamento do próprio fazer artístico na atualidade, muito bem impressas e expressas nas seqüências coreográficas criadas por Mercury. Mas insistindo na mesma partitura de movimentos, mesmo trocando de figurino em público a cada nova música escolhida, Marcos Mercury causa um certo desconforto na platéia, que parece não alcançar as intenções do artista. Talvez com uma pesquisa mais aprofundada, ele pudesse construir um enredo mais definido, para a movimentação não soar aleatória e improvisada. Ainda que as repetições tenham sido propositais, a proposta precisa ficar mais clara. Não que isso comprometa o trabalho, mas com as questões e objetivos esclarecidos, o discurso de “Cardápio do Corpo” se tornaria, sem dúvida mais convincente, mais contundente. Afinal, quantas coisas podem nos dizer os gestos e ações de um bailarino que resolve dançar e vestir várias “fantasias” em praça pública? O bailarino, além da excelência técnica e segurança cênica, acerta no tom naturalista da sua interpretação, tão necessário nas intervenções urbanas. Fragilizando-se apenas por alguns detalhes desnecessários na sua estrutura de produção, como o fato de ser outra pessoa e não ele nem o ator-garçom a operar o som no laptop e, principalmente, a presença constante de uma espécie de contra-regra que enxuga várias vezes o suor do intérprete, desviando a atenção do público do que realmente está em questão.

    Gosto de pensar que “Cardápio do corpo” terá muitas versões, cada vez mais aprimoradas. Mas gosto mesmo é de acreditar que Marcos Mercury, vai continuar sua trajetória evoluindo no caminho das intervenções urbanas, investindo em espaços e formatos não convencionais de espetáculo, e, conseguindo assim, contribuir para a formação de platéia e a tão necessária aproximação entre público e arte contemporânea.

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