Este meu texto foi originalmente publicado em http://www.idanca.net/ e faz parte da série de críticas do projeto Interação e Conectividade.
Matrioska é terno, e cômico, singelo e complexo, como um clássico de cinema mudo. Distante da cenografia e figurinos megalomaníacos que ainda são sustentação de muitas produções cênicas para crianças “a la disney”, Matrioska cria por meio de recursos simples como o teatro de sombras um reinado absoluto da imaginação, com direito a cenas de suspense, episódios de comédia e até um certo tom operístico, realçado pela excelente trilha sonora, composta por Sérgio Cruz a partir de uma sinfonia de Rachmaninov. O jogo de esconde-esconde inventado por Tiago diz que nem sempre o que vemos é exatamente o que está sendo mostrado. O que há atrás do pano e quem é que existe embaixo do capuz e da meia? Como somente duas pessoas conseguem ser tantas figuras? As aparências enganam ou talvez seja melhor dizer: o visível é só uma das formas do acontecimento, e vem sempre acompanhado de muitos invisíveis. Criança ou adulto, esse espetáculo é um convite a “matrioskar”, ou seja, a ir além do visível, enxergar mais do que o óbvio, entender com os cinco sentidos, descobrir o outro, procurar novos significados do mesmo. Quantos significados pode ter um gesto simples? É desta simplicidade aparentemente despretensiosa que o coreógrafo extrai sua poética, levando a sério ser brincadeira, indo a fundo na missão de apresentar-se leve, independente do peso das questões que o seu discurso quer evidenciar.
E pelo visto a matrioskagem de Tiago Guedes vem de longa data, ainda que o caminho não seja linear. Em 2003, o gosto pelo invisível já aparecia em um dos seus solos iniciais, Materiais Diversos. Uma sequência de movimentos corriqueiros que bem podia fazer parte do cotidiano de qualquer pessoa (até das que nunca foram sequer público de dança) serviu de partitura para acionar a visão além do alcance. E como em um passe de mágica, cenas pulam do mundo da imaginação para encher de significado os movimentos aparentemente banais que ele naturalmente vai desfiando. É assim das abstrações colocadas no palco vazio, que o tudo vai se construindo pouco a pouco, primeiro na projeção do que conseguimos imaginar a partir de cada ação de Tiago, depois no cenário instantâneo que precisamente ele vai montando e desmontando. Chamas de isqueiro e spray com tinta verde ajudando a compor a paisagem no painel de jornais, sacos de lixo que surgem inesperadamente de debaixo de um tapete, deixando a cena azul... E a repetição da mesma sequência, de movimentos corriqueiros, agora ganha ares de coreografia. Mais uma vez a opção pela simplicidade gera uma trama complexa de questionamentos e reflexões acerca de processos e procedimentos na criação artística contemporânea. No exercício da matrioskagem o lugar de trânsito é mais confortável, até mesmo porque podemos trazer os materiais diversos - para dar corpo às imagens e discursos desejados - de várias linguagens, do teatro, da música, das artes visuais etc. A lógica de apresentação do cinema mudo que aparece tanto em Matrioska como em Materiais Diversos fala alto, ecoando reflexões: Será que a partitura é realmente a mesma ou... o que é que muda no corpo com a presença ou ausência dos diversos materiais? Será que tudo pode ser material para a dança? O que é cópia e o que é original? O que veio antes, o material ou o movimento desenhado com ele?
Experimentando texturas e intensidades diferenciadas na relação com seus tantos objetos cênicos, mesmo quando na versão invisível da coreografia, o criador português apresenta processo e produto ao mesmo tempo. Abre a cortina e deixar ver o antes da cena. Como se montasse um quebra-cabeça de trás para frente, Tiago brinca de novo com a nossa ilusão de ótica e nos leva ao lúdico ambiente do invisível, potencialmente poético, de onde provavelmente nós não vamos querer nem poder sair. Deitados e deleitados nos poemas imagéticos destes Materiais diversos, matrioskar não é só uma necessidade, é um hábito natural que inevitavelmente adquirimos, e que, como diriam os portugueses, “sabe muito bem” (ou traduzindo para brasileiro, tem um ótimo sabor).
1 comentários:
Embora eu não conheça a Matrioska, essa Disney do Mundo Real e não dos sonhos, gostei bastante do texto. Ao que parece, o autor,tenuamente influenciado por resquícios de platonismo, deseja mostrar a plurisignificância dos textos (me refiro a todos os textos e não apenas aqueles construídos com palavras). Valeu Cris Galdino os seus textos sobre arte sempre me surpreendem.
André Pessoa
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