MARCELA REICHELT E AS ESCRITAS DO CORPO

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  • sábado, 10 de julho de 2010
  • por
  • Chris Galdino
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  • Este meu texto foi publicado originalmente na série Conectivos Críticos do Idança, junto com os textos de Joceval Santana e Carlinhos Santos. Confiram essa segunda fornada de textos em http://idanca.net/lang/pt-br/2010/07/08/conectivos-criticos-ii/15648.

    Ei, é para ler e comentar, visse?


    Escuro completo e um aparente vazio. Mas algo está acontecendo no palco. Ela está dançando no escuro mesmo...Ouvimos o movimento, sentimos a dança respirando, antes mesmo de podermos distinguir nitidamente qualquer imagem. Escolhendo essa cena como início, Marcela Reichelt, aciona em nós, uma outra percepção, como se desejasse inaugurar uma forma diferenciada de nos relacionarmos com a arte, como se quisesse ativar em nós outra visão. A sensação é de estarmos imersos em uma escuridão absoluta, que vai abrindo brechas e revelando fragmentos de um corpo em movimento dançando para si mesmo. Talvez a ambiência criada, e essa postura da intérprete, que parece ignorar a presença do público emprestem aos momentos iniciais de Como risco em papel características de voyeurismo e um caráter sensual, que se repete em várias cenas. Pelas frestas, enxergamos trechos da escrita corporal de Marcela, e abrem-se imediatamente muitas janelas de leitura. Como um trailer de filme e as orelhas das publicações, a artista apresenta-se em flashes, construindo uma sucessão de imagens marcantes, que transbordam força poética com uma sutileza desconcertante. A trilha sonora, uma criação primorosa de Diogo de Haro, surge com ar de música incidental, ajudando a criar pontes com o filme de Peter Greenway, “O Livro de cabeceira”, que inspirou este segundo trabalho da bailarina Marcela Reichelt, agora na missão de intérprete-criadora.


    Uma aproximação visível com as artes visuais aparece a todo momento, seja nos desenhos coreográficos majoritariamente imagéticos, seja na presença de certos objetos cênicos e dos vídeos que são exibidos na performance. Porém as cenas projetadas soam como capítulos a parte, guardam pouca relação com as partituras de movimento apresentadas por Marcela Reichelt, funcionando como complemento algumas vezes, mas mostrando sempre uma trajetória autônoma. É como se dois espetáculos se intercalassem, e dialogassem em alguns momentos, porém cada um permanecesse no seu lugar. Mas ainda que se perca um pouco do ritmo da cena durante a exibição dos vídeos (principalmente no caso do vídeo que apresenta uma longa performance de rua de um bailarino), a dança escrita por Marcela, as falas do seu corpo se fixam na memória com um poder encantador tamanho que apagam qualquer possível descompasso. É difícil permanecer inerte, alheio diante do encontro com o corpo nu visceral de Marcela transmutado em bicho, em papel, gritando lentamente e em silêncio, a fusão entre corpo e escrita, e as tantas questões aí atravessadas. Mesmo quando a cena final tenta devolver à artista à escuridão absoluta do início, como se tudo e inclusive a identidade e as vivências impressas no corpo pudessem ser apagadas, a imagem daquele banho de noite se agiganta e se acende cada vez mais na nossa sensibilidade e na nossa imaginação. E dali não deve sair por um bom tempo. Delicadeza, mistério, sensualidade, enigma, oriental, ternura, feminino: são alguns termos que poderíamos utilizar se fosse possível traduzir em palavras Como risco em papel.

    Talvez esse trabalho tenha sido rascunhado desde a criação do seu solo de estréia, Occo, que na verdade ao contrário do que o título sugere, é cheio, repleto de células narrativas justapostas, ou, em outras palavras, tem dentro dele embriões criativos capazes de gerar vários espetáculos. Apesar de Occo incluir ainda muito da movimentação do Grupo Cena 11 (como algumas quedas e a opção de organizar em cenas fragmentadas, independentes entre si e desconexas, o espetáculo), onde ela atuou como bailarina até o ano passado e onde ainda estava quando criou essa obra, já vemos traços autorais no gestual e nas escolhas estéticas, que são confirmados e desenvolvidos em Como risco em papel, de 2009.

    Estou falando de uma coisa difícil de explicar, que é cinética mesmo. É incrível, por exemplo, a exploração de torções que ela apresenta, indo até o limite do improvável, em uma deformação ou nova modelação corporal a cada “pose”. E que além de trabalhar a desconstrução de imagens, nos faz também refletir a cerca das múltiplas identidades que assumimos no mundo contemporâneo. Impressiona a disponibilidade desse corpo descobrindo seu idioma particular, seu sotaque próprio, que sempre terá inevitáveis tons dos vocabulários que ele aprendeu a dominar. Isso é fato, e não é ruim nem estranho que assim seja.

    O diálogo com as artes visuais já estava presente em Occo, algumas vezes mais bem resolvido como na cena do vídeo das formigas simultâneo a uma seqüência de movimentos de chão da bailarina, por exemplo. Mas eu ia dizendo que o Occo de Marcela Reichelt não tem nada de oco, é cheio de assuntos, o oco talvez seja então uma referência aos questionamentos que motivaram a criadora? É uma possibilidade de interpretação, porque estão em jogo nesse trabalho muitas questões relacionadas ao corpo social, aos estigmas culturais, aos estereótipos do belo e do feminino, a toda forma de prisão, sanção e convenção socialmente estabelecidas. A amplitude da temática, e uma certa ansiedade criativa da, na época (2007), estreante coreógrafa são visíveis no resultado cênico, que carece de maior foco nas escolhas para se realizar mais plenamente. Nada que um processo natural de amadurecimento da obra não consiga concretizar rapidamente. Ver Marcela Reichelt em cena é ver uma coleção de belas e fortes imagens, é ver um vocabulário de dança no momento em que está sendo gerado, é ver um corpo escrevendo poesia...

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