África lusófona: muito além das danças tribais

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  • segunda-feira, 7 de junho de 2010
  • por
  • Chris Galdino
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  • GENTE, VOU APROVEITAR ESSE ESPAÇO TAMBÉM PARA POSTAR TEXTOS QUE JÁ PUBLIQUEI, TÁ? A MATÉRIA QUE SE SEGUE FOI PUBLICADA NA REVISTA CONTINENTE (ED.CEPE-RECIFE-PE), DE FEVEREIRO DE 2010. E QUEM ME CONHECE MAIS DE PERTO, VAI ENTENDER PORQUE ELA É TÃO IMPORTANTE PARA MIM.

    EM PAUTA, A DANÇA PRODUZIDA NAS ÁFRICAS....
    ESPERO QUE GOSTEM. AGUARDO COMENTÁRIOS, BEIJOS, CHRIS



    África lusófona: muito além das danças tribais

    Que a história cultural do Brasil foi escrita com vocabulários da África não é novidade, mas o que realmente sabemos da cultura dos povos africanos? Poucas são as informações que conseguem chegar aqui sem interferências e/ou distorções. Como constatou a coreógrafa angolana Ana Clara Guerra Marques: “o Brasil mantêm um olhar romântico, cultuando a imagem da eterna África selvagem, exótica e única, e deixando de contemplar assim, todas as diversidades, até mesmo a diversidade cultural de cada país africano”. Angola é um bom exemplo desta diversidade e sua variedade de danças vai além dos populares kuduro e kizomba, dançados em boates do mundo todo, até mesmo porque muitos são os povos que a habitam, e cada um tem as suas danças tradicionais, preservadas principalmente por grupos do interior. Na capital, Luanda, o que existe são companhias de inspiração tradicional como o Yaca e o Kilandukilu, este último sediado em Lisboa desde 1998, e com uma extensão no Recife, fruto de iniciativa da Associação Pé no Chão, que desenvolve projetos pedagógicos e culturais. “O trabalho com o Pé no chão, foi uma das melhores parcerias que já fiz, e teve um resultado extremamente positivo. Depois de algumas aulas, conseguimos criar um embrião do Kilandukilu no Recife, apresentando um espetáculo com os jovens do projeto. E agora vamos dar continuidade ao processo de formação, com a ida de um professor de percussão nosso ao Recife para ministrar um curso completo”- conta o bailarino angolano, diretor do Kilandukilu, conhecido como Petchú.
    Mesmo sem formação em dança, ele assumiu a coordenação do Kilandukilu em 1988, e conseguiu alcançar projeção internacional. No repertório do grupo, um leque variado de danças: desde as de exaltação espiritual como a kazukuta, até as carnavelescas, passando, pelo massemba, dançado a pares. O sempre difícil caminho da emigração fez com que a luta pela sobrevivência em terra estrangeira falasse mais alto e a pesquisa das danças tradicionais de Angola acabasse não acontecendo. “Chegando a Portugal encontrei outra forma de trabalhar, então tive que criar a minha forma de elaborar as coreografias e aulas. E fui descobrindo naturalmente o meu próprio estilo de leitura/escrita corporal”- recorda Petchú. Pesquisadora das danças de Angola há vinte anos, e única a estudar as danças de máscaras do povo Cokwe, Ana Clara, diz que até em Angola “é fácil de as pessoas desconhecerem a panorâmica das danças locais e se enganarem, pois pouco sabem sobre a sua genuinidade e aceitam como verdade tudo que lhes é mostrado como tal. Isso porque a ideia difundida é de que basta ser negro, tocar tambor e fazer movimentos vigorosos para ser africano”.

    Sem tradição em dança cênica, Angola enfrenta também a rivalidade entre artistas de formações distintas. “Curiosamente, o desdém vai para quem apresenta um trabalho mais intelectualizado, seja a nível conceptual, seja nos planos estético ou técnico. Há ainda um grande desconhecimento do que é a dança contemporânea, havendo a ideia generalizada de que é um gênero que dispensa formação. Não se sabe da história, nem dos seus percussores e motivações. Assim, qualquer um que faça algo que não identifique como tradicional, diz que é contemporâneo”- explica Ana Clara, diretora da Companhia de Dança Contemporânea de Angola, único grupo do gênero no país. Cada um a seu jeito, o autodidata Petchú e a mestre em performance artística, Ana Clara, mostram que existe muito trabalho sendo produzido no contexto da África contemporânea.
    Existe dança de qualidade além dos limites colonialistas, e uma diversidade que não combina em nada com a imagem que povoa o imaginário brasileiro “de uma África pura e inocente, com o seu belo por de sol e suas danças tribais”, como descreve António Tavares, bailarino e coreógrafo caboverdiano. Ele conta que “antes de falar das danças de Cabo Verde, é fundamental fazer um enquadramento histórico-geográfico do arquipélago, porque é exatamente aí que se encontram as marcas da formação do país: quando vieram pessoas de várias partes da costa ocidental africana e da Europa, trazidos pelos portugueses para povoar as Ilhas. Esta origem mestiça é hoje tão evidente na sua paisagem humana e lingüística; como também nas suas danças. Em Cabo Verde, tanto podemos encontrar danças do século XVII-XVIII da Europa como elementos que das danças de transe da civilização Dadá da costa ocidental africana”.


    Estudioso da cultura do seu país, António Tavares, costuma organizar os gêneros de dança tradicionais de Cabo Verde em dois grupos: “as danças dos bailes, como morna, coladêra, mazurca, lundum, funaná; e as danças dos terreiros, como kola san jon, batuko, tabanca, etc”. Mas ele mesmo avisa que esta classificação, ainda deixa de fora uma série de outras danças que desapareceram ou só são dançadas por uns poucos. Sobre suas escolhas, o coreógrafo diz que “Sendo um bailarino caboverdiano, criador free-lancer, emigrante, cedo percebi que não havia muito por onde eu andar, eu teria que inventar a minha própria estrada. Mas, mesmo morando em Portugal, Cabo Verde continua a ser o meu laboratório criativo, é ali que começa a minha inquietude criativa. Vou várias vezes estudar nas danças tradicionais caboverdianas, formas e fórmulas coreográficas e outros assuntos de interesse antropológico ou político, e naturalmente o seu valor artístico. A partir daí, tento arranjar elos de ligação às temáticas atuais, à procura de uma linha genuína e pessoal, mas que possa ser lida em qualquer parte do mundo. Para mim, a criação contemporânea é uma linha livre que começa em lugar nenhum e não tem final de estação”. Deste trabalho contemporâneo fincado na cultura caboverdiana já surgiram espetáculos como SOBREtudo, Danças de Câncer, e a Ópera Crioulo, envolvendo músicos, cantores e bailarinos em uma montagem grandiosa, que estreou em 2009, em Lisboa.

    De acordo com Jeff Hessney, produtor da companhia de dança contemporânea Raiz di Polón, “há vários grupos de dança tradicional em Cabo Verde, com destaque para o Maravilhas Tropical de Porto Novo, da Ilha de Santo Antão. Já existiram muitos grupos interessantes em São Vicente também, mas como a maior parte dos integrantes emigrou, ou não existem mais, ou não têm a mesma pujança de anos atrás”. Em dança contemporânea, dos poucos grupos, quase ninguém “conseguiu resistir a esta calamidade crioula da partida, da emigração. O único grupo que tem feito um trabalho titânico de formação de bailarinos; de socialização da dança contemporânea nas Ilhas, e de divulgação da cultura caboverdiana no estrangeiro, é o Raíz Di Pólon”- complementa António Tavares. A Cia. Raiz di Polón começou como grupo de danças tradicionais, e em 1994 entrou em contacto com a dança contemporânea, através do projeto Dançar Cabo Verde, dos coreógrafos portugueses Clara Andermatt e Paulo Ribeiro, e ficaram fascinados. Mesmo decidido a investir na vertente contemporânea, Mano Preto, diretor da companhia, não se desvinculou das tradições, até mesmo porque ele acredita “que não existe dança contemporânea, sem uma referência à dança ou à cultura tradicional. Pelo menos, não em Cabo Verde”. Escolhendo permanecer em Santiago, Mano Preto, investiu na formação de bailarinos, inicialmente só do seu próprio elenco. E, a partir de 2005, começou a abrir os seus ensaios diários, e vários estudantes do ensino médio, passaram de observadores a alunos. Assim surgiu a Escola Raiz di Polón, que desde então vem oferecendo formação aos jovens, e transformando definitivamente o cenário da dança contemporânea caboverdiana.

    Sem sair de Santiago o Raiz di Polón se lançou para o mundo, apresentando-se em países como Portugal, Holanda, Estados Unidos e até a China. Mas apesar da carreira internacional e de já ter conquistado um público para a dança contemporânea nas Ilhas, o Raiz di Polón, assim como as demais produções “crioulas” de dança, ainda não conseguiu uma projeção significativa no Brasil. Mesmo próximo geograficamente e com evidentes semelhanças culturais, o arquipélago e seus artistas, continuam desconhecidos da maioria dos brasileiros. Uma contradição, principalmente em se tratando do Brasil, que é herdeiro direto da cultura africana. “A lógica do racismo no Brasil é baseada em uma negação histórica, uma tentativa de tornar invisível a presença africana. E isto muitas vezes se dá de maneira não declarada, por meio de uma supervalorização da cultura européia e do pensamento eurocêntrico”- opina o pesquisador Lindivaldo Júnior, que é assessor técnico da secretaria de cultura, além de desenvolver um estudo acadêmico sobre história da África.

    O desrespeito às particularidades de cada país africano é o primeiro indício de um preconceito, que atravessou séculos e continua ressurgindo mesmo no ambiente supostamente livre e democrático da arte. Depois de um mês trabalhando em Recife, Petchú, disse que “durante toda a nossa temporada no Brasil, sempre fomos tratados como africanos e nunca como angolanos, o que faz crer que os brasileiros desconhecem a realidade africana e as múltiplas formas de dança deste continente”. Mano Preto acredita que talvez “a cultura africana não esteja sendo ensinada da forma que deveria nas escolas brasileiras”, o que acaba colaborando com a permanência de ideias estereotipadas, que desprezam o panorama diversificado e dinâmico da dança na África. Para Lindivaldo Júnior, “tratar África como algo singular é um erro, a África é plural. Fazer dança africana é também praticar a dança dos orixás, mas não é só isso”- esclarece o pesquisador, mencionando outra confusão habitual, que é a associação da dança africana exclusivamente às manifestações ligadas ao candomblé. Ele reconhece que já houve avanços, inclusive em termos de políticas públicas, mas ainda há muito a ser feito. Jeff Hessney conta que “um curador que estava querendo levar o Raiz di Polón a um festival em São Paulo perguntou se o grupo não teria uma coreografia mais tribal, o que me entristeceu bastante, particularmente porque veio de um país que eu supunha estar empenhado em acabar com estereótipos de uma África imaginada e racista”. Considerar dança africana como sinônimo de dança tribal é o mesmo que dizer que só samba é dança brasileira. Questões que mostram a urgência de políticas culturais que possam sanar tão graves ausências e reconstituir estes laços históricos. Reconstruir a ponte que liga África e Brasil é um desafio necessário, e mais que isso, é uma porta de acesso para o conhecimento da nossa própria realidade cultural, para saber quem somos de fato.

    4 comentários:

    Unknown disse...

    Gostei deste texto. Estou lendo “A PERFORMANCE AFRO-AMERENDíA” de Zeca Ligiero que fala algumas coisas que tu abordaste aqui. Vou anexar seu escrito aos meus estudos. Beijos, Marcia de Aquino.

    Chris Galdino disse...

    Ei, Marcia...tem link ou referência completa do livro? Me manda. Que bom que minhas palavras te servem, adoro essa temática, vamos conversar mais...bjs

    Leticia Sekito|Companhia Flutuante disse...

    Primeira vez aqui.
    Sabe que eu tive a oportunidade de ver em Lisboa tanto o projeto Dançar Cabo Verde, como depois o Raiz de Polon no festival Danças na cidade. Estava agora a conversar com um curador português de artes visuais de como é estranho estarmos tão longe de pessoas e países de língua protuguesa que na verdade poderiam estar mais próximos. Sempre tive vontade de fazer um projeto para trazer pessoas da dança de Portugal, por exemplo. De repente aproveito e penso também em incluir Cabo Verde, Angola, Moçambique..
    bj.

    Chris Galdino disse...

    Vamos pensar nisso Letícia...eu fiz um projeto, mas preciso ir atrás de financiamento. Podemos falar mais sobre isso, né? Bjs, e venha sempre aqui...

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