NIETZSCHE POR FUKUSHIMA: o cansaço transformador

Postado em:
  • sexta-feira, 16 de julho de 2010
  • por
  • Chris Galdino
  • in
  • Este texto faz parte do terceiro bloco da série Conectivos Críticos, publicada em http://www.idanca.net/, junto com os textos dos críticos Carlinhos Santos (RS) e Joceval Santana (BA), a partir do que vimos na programação do Interação e Conectividade, evento produzido pelo Dimenti (Em Salvador, em junho).
    Essa foi a terceira vez que vi o "Fuku" apresentar seus cansaços. Para fazer uma ligação mais consistente com o inspirador niilismo de Nietzche, contei com a ajuda preciosa de André Pessoa. Valeu, professor!



     
    Ter fé é dançar na beira do abismo- sentenciou Nietzsche no final do século XIX. E como seria essa arriscada dança dos crédulos, imaginada por ele, hoje, no futurista século XXI? Mesmo sabendo que o filósofo estava usando uma metáfora, foi inevitável para mim, depois de assistir o mais recente trabalho do bailarino paulista Eduardo Fukushima, não fazer uma associação imediata à famosa frase. Partindo do seu próprio corpo, e provavelmente das suas crenças e descrenças, Fukushima decidiu não ficar somente à margem, na iminência de, na beira do abismo... Ele mergulhou no seu próprio abismo, e dessa queda voluntária e intencional trouxe sua dança. Caído no abismo, o bailarino começou uma viagem exploratória, uma expedição pelos seus gestos e movimentos para ver o que naturalmente permanecia. O que se incorporava. O que era seu. Usou o que o seu corpo conhecia para descobrir o que não conhecia, expandindo os movimentos que já havia experimentado em fases anteriores da pesquisa. Nem teorias nem temas, somente o corpo e essa vontade de autoconhecimento guiam esta sua busca como intérprete criador há pelo menos quatro anos, sendo ponto de partida e chegada de três solos e item principal do seu processo criativo. E por falar em processo- atual palavra-vedete dos eventos, editais e discursos da dança contemporânea- seu trabalho mais recente, Como superar o grande cansaço? (2010), aproveita bem a natureza inacabada dos processos, abrindo uma janela e mostrando pra gente em tempo real essa pesquisa em curso. Os improvisos diários feitos na sala de dança chegam ao palco, mantendo a cara de ensaio. A escolha de um figurino casual, a ausência de cenografia, iluminação simples, e a forma de iniciar e finalizar o solo, ajudam a estabelecer o caráter processual.


    Em cena, vemos um bailarino aparentemente exausto insistindo em se cansar mais e mais, e parecendo nunca chegar ao esgotamento total. Fukushima partiu de seus depoimentos pessoais, das situações/condições do seu corpo, suas aflições e deficiências e foi levado literalmente ao chão, mas não ao fundo do poço, e sim a um solo fértil que vai florescendo novas possibilidades coreográficas a cada toque. Cobrindo o chão de movimentos fragmentados, martelando todo o espaço ora com as pernas, ora com os cotovelos ou a cabeça, ele descobriu seus cansaços, físicos, psíquicos, existenciais. A trilha sonora, criada pelo próprio Fukushima em parceria com Felipe Ribeiro e inspirada em improvisos de Henrique Iwao, Mário Del Nunzio e Jean Pierre Carón, reforça as marteladas, parecendo indissociável da movimentação. Ele trata então de preencher todo o espaço com essa cansativa partitura, mas o que poderia ser motivo de desistência se transforma em insistência de movimentos e gestos. Qualquer semelhança com os estudos do cansaço e a transvaloração proposta por Nietzsche não é mera coincidência. A inspiração veio do filósofo mesmo, mais especificamente das discussões sobre o niilismo, onde Fukushima descobriu a vontade de potência, o niilismo ativo como caminho para sua dança e sua vida, tal como Nietzsche, que somente na enfermidade diz ter encontrado a razão. A sensação que tivemos é que quanto mais cansado o bailarino ficava, mas dança conseguia gerar. Assim foi até mais fácil entender a vontade de potência e o niilismo ativo de Nietzsche, vendo essa idéia incorporada no cansaço produtivo de Eduardo Fukushima.

    Apesar do caráter biográfico confesso, a dança do jovem criador não tem pretensões de expressar ou narrar acontecimentos ou sentimentos, não quer contar histórias nem defender identidades. Ao contrário disso, ele tenta apagar o sujeito que executa a dança para a dança se tornar o assunto. Bebendo em fontes filosóficas e voltando todas as suas atenções de pesquisador para questões corporais, Fukushima encontrou um cansaço que não é sinônimo de entrega/desistência, que não se acomoda, que é impulso transformador; convertendo em movimento o niilismo ativo de Nietzsche. E como em uma seção de hipnose, a repetição de seqüências acaba levando o público a embarcar naquele estado, participar do processo, e experimentar o cansaço ali exposto, e sua vontade de potência intrínseca. Ufa! É verdade! Nós cansamos também! E Como superar o grande cansaço? A idéia deste artista não é encontrar respostas... Por isso mesmo, Fukushima escolhe multiplicar as perguntas, transcrevê-las em linguagem corporal, revelando aos poucos um potente vocabulário que, certamente, ainda tem muito o quê escrever.

    0 comentários:

    Postar um comentário

     
    Copyright (c) 2010 | Todos os direitos reservados Blog Oficial EscHritos de DANÇA by CHRISTIANNE GALDINO
    Modelo adptado por: Topetinho Webdisiner