Crítica em dança: construções compartilhadas

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  • quarta-feira, 8 de setembro de 2010
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  • Chris Galdino
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  • CRÍTICA EM DANÇA: CONVERSAS COMPARTILHADAS



    Chris Galdino:

    Dizer o que pensa: essa não é uma tarefa nada fácil, principalmente quando a gente fala de algo tão subjetivo como arte contemporânea. Teoricamente é isso que um crítico de dança faz ou o que se espera que ele faça, não é? Simples assim? Não! Definitivamente não é simples. São tantos fatores em jogo! A gente falou sobre isso em uma conversa promovida pelo Interação e Conectividade (produzido pelo Dimenti), em junho, lá em Salvador. O título do encontro era CRÍTICA EM DANÇA: COMPARTILHANDO PARÂMETROS. E, além de mim, foram convidados para esta partilha Carlinhos Santos (Caxias do Sul-RS) e Joceval Santana (Salvador-BA). Resolvemos partilhar trechos dessa conversa, no diálogo que se segue entre mim e Carlinhos.

    A crítica é uma forma de legitimar a obra de arte - já ouvi isso algumas vezes. E também me ensinaram que ela faz parte de uma categoria chamada jornalismo opinativo, apesar de não ser exercida somente por profissionais de comunicação e de assumir vários formatos. Então, como se trata de opinião, não será nunca imparcial, certo? E também por se tratar de opinião, por mais que a gente evite falar isso, tem a ver com gosto sim!

    Carlinhos Santos:

    Tecer considerações pautadas pelo gosto não pode sequer ser entendido como um pensamento crítico, pois quando o gosto opera, o objeto do discurso não está, de fato, sendo observado na sua singularidade. O gosto fala mais sobre o dono do gosto do que do objeto sobre o qual parece estar observando. Portanto, para a escrita de uma crítica, se faz necessário outro tipo de aporte e de conhecimento, que capacite o crítico a, de fato, lidar com o objeto, propondo uma reflexão.

    Chris Galdino:

    Quando falo de gosto, Carlinhos, falo de uma opinião que será pautada por parâmetros subjetivos e pessoais. Digo que os critérios não são objetivos nem mensuráveis, mas nem por isso deixam de ser sérios, profundos e, consequentemente, críveis. Tudo bem, não vou usar esse termo para evitar mal entendidos e interpretações equivocadas, combinado? Também não concordo com o sistema de valoração imposto por alguns que se aventuram na crítica em dança. Mas você concorda que crítica é opinião?

    Carlinhos Santos:

    Compreendendo a crítica como uma fala pública, dotada, portando, de um vocabulário com alcance junto a um número significativo de outros leitores. Tendo inserção e reverberação nos lugares e espaços de um comum partilhado, ela passa a ter, também, ação política e ideológica. É um exercício de quem tem “competência para ver e qualidade para dizer” (citando Jacques Rancière)

    Chris Galdino:

    Mas para que serve divulgar o que se pensa? E a quem interessa saber da opinião de um especialista sobre este ou aquele trabalho de dança? Os artistas parecem viver em um misto de medo e desejo da famigerada crítica; afinal, esse é um dos meios de reconhecimento do seu trabalho.

    Carlinhos Santos:

    Para muitos, criticar determinada produção ainda é entendido como o estabelecimento de diferentes graus de censura, como um discurso que vai limitar as obras e cercear os seus criadores no seu “livre exercício da criação”. Esta perspectiva, embora equivocada e rasa, tem construído um universo densamente povoado por egos de pseudo-criadores, nada dispostos à reflexão a respeito das suas obras.
    Trabalhar com responsabilidade o desenvolvimento de uma argumentação sobre uma determinada obra de arte significa buscar tratar esta obra como produto de uma experiência ímpar, carregada de fenômenos, sentidos e propriedades específicas. Todas negociadas com seus respectivos ambientes, definidores de novos sentidos, desdobrados em outros tantos. Uma experiência autônoma, portanto, e irredutível às habituais categorias de apreciação ou definição de um tipo de “juízo de valor”, apoiado pelo “bem dançado/mal dançado” ou “bonito/feito”. Afinal, as trocas intermitentes entre determinada obra/corpo com seu meio/contexto, rearranjam, também, uma nova condição da crítica.

    Chris Galdino:

    Concordo com você. Responsabilidade e propriedade são palavras que se empregam aqui muito bem. Não existem fórmulas para essa nova condição crítica, assim como não existe um modelo que garante o “sucesso” de uma obra, cada crítico vai experimentando e descobrindo sua metodologia e seu estilo. Mas isso depende de propriedade, de conhecimento prévio, de aprofundamento das questões, de estar preparado e sempre em busca de aperfeiçoamento nessa missão. É um aprendizado constante e exige muita responsabilidade no fazer para não cair no “juízo de valor”, nas interpretações generalistas e, principalmente, não usar o mesmo “filtro” para olhar obras, percursos e processos diferenciados. Mas para que serve de fato a crítica de dança?

    Carlinhos Santos:

    A crítica de arte vai atuar também com um sentido político, ao abrir espaço para a explicação/compreensão de que uma obra é a exposição, na forma de dança, de uma certa visão de mundo. Claro que vale buscar aproximá-la de famílias estéticas, enumerando as referências e mediações que ela sugere, mas sempre tentando adentrar a lógica que a organiza, dialogando, através de um pensamento crítico, com o que ela propõe com as escolhas que fez. Em A Partilha do Sensível – Estética e Política, o filósofo francês Jacques Rancière faz uma aproximação entre os conceitos de política e estética, permeados pelo mundo sensível, elaborando uma reflexão de que o fazer artístico ecoa num fazer político, proporcionando a visibilidade das artes.

    Chris Galdino:

    Uma das possíveis respostas a essa questão vem da relação público-artista. Nesse caso, uma análise crítica cumpriria também a função de mediação entre obra e espectador, aproximando e, de certa forma, tentando direcionar o olhar, chamar a atenção da plateia para alguns aspectos específicos. E se é assim, convém pensar em quem é esse público leitor das críticas. O "para quem" escrevo faz toda diferença... Se é mediar que eu quero, evitar certos termos ajuda a chegar mais perto dos não "iniciados" com quem quero falar.
    Um das minhas estratégias, por exemplo, é tentar não usar as palavrinhas comuns ao "jargão" profissional que existe na dança contemporânea, até para não deixar o texto velho rapidamente, já que tal dialeto vai sendo frequentemente atualizado de acordo com as regras que ditam as tendências estéticas do momento. E isso muda bastante.
    Mas a mediação é só uma das múltiplas funções da crítica, que também tem que alcançar (e satisfazer!?) os artistas e os leitores especializados, além de servir também como documento e registro histórico para a posteridade, ou seja, de funcionar também como fonte aos pesquisadores e aos próprios jornalistas. Tantas funções só tornam nosso trabalho mais e mais complexo.

    Carlinhos Santos:

    Não dá para tentar convencer o público empregando um determinado discurso mas, sim, estimulá-lo a desenvolver a sua possibilidade de leitura, para que essa possa ser praticada também com outras obras. A “nova” crítica pode nos ensinar a pensar de outra maneira e, ao mesmo tempo, dada a efemeridade de muitas certezas, reforçar a necessidade de, o tempo todo, estarmos atentos à busca da renovação dos parâmetros para lidar com a obra de arte. Sempre, uma questão do olhar! O crítico pode e deve produzir, através de seu discurso, mais substantivos do que adjetivos.

    Chris Galdino:

    Na conversa da gente no Interação e Conectividade em junho em Salvador, dissemos logo que não existe um modelo, uma receita de crítica. Assim como os artistas, cada um de nós, críticos, tem um "processo" diferenciado e um histórico distinto também. Diferenças e discordâncias à parte, nós concordamos sobre a importância do acompanhamento da "cena", de ver sempre diversificadas produções em dança e conviver com muitos artistas e seus processos criativos.
    Acontece que a proximidade com artistas e obras, considerando que a imparcialidade é um mito, geralmente nos leva a um dilema: como apontar as fragilidades de um trabalho (principalmente quando o autor da obra é seu "chegado")? Como fazer a tal crítica construtiva? A experiência mostra que esta situação é um desafio para ambos os lados. Para os críticos que muitas vezes não sabem como falar, e para os artistas que na maioria das vezes também não estão habituados a ouvir e aceitar a opinião alheia. Eita, que sinuca de bico! Já vivi os dois lados, e sei que é barra. Mas se servir para estimular as discussões, aprofundar os debates, acho que vale à pena encarar o desafio, não acha?! E você, o que espera de uma crítica de dança?

    Carlinhos Santos:

    No contexto da crise de produção do jornalismo cultural e da diminuição dos espaços dedicados a este segmento, a crítica jornalística também sofre instabilidade. Nos últimos anos, este formato diminuiu sensivelmente sua inserção na discussão sobre a produção contemporânea dos diversos tipos de arte. A reflexão sobre a arte tem tomado diferentes rumos e alcançado novos suportes. Mas é no corpo do jornalismo que ela deveria ter seu espaço privilegiado, abrindo diálogo com o público, propondo não polêmicas, mas reflexões em torno dessas manifestações de produção cultural, mosaico cada vez mais multifacetado na contemporaneidade. Diante de um contexto em que insiste em relativizar a importância da crítica na mídia, ou olhá-la como pouco significativa, é preciso redimensionar o alcance da sua comunicação, dando vigor a ela no corpo dos veículos de informação. Eu espero uma crítica que saiba dançar, vigorosa em sua manifestação, contundente em seus questionamentos, pertinente enquanto fala circunstancial e dialógica, sempre!
    Conceber a crítica jornalística como uma aliada da frequentação das artes é uma das possibilidades de redimensionar esta prática. A ordem é refazer continuamente o texto até aproximá-lo das preocupações que constituem a dança sobre a qual se escreve. Em uma série de aproximações, levantar as hipóteses que expliquem quais as idéias sobre o mundo que cada dança encena. Cabe sobretudo ao crítico a inserção destes novos horizontes da produção cultural no jornalismo . Para isso, deve conhecer o percurso dos seus criadores, contextualizar suas informações, inserir as manifestações culturais em seu momento histórico, para, então, poder intermediar a relação entre o artista e o público, promovendo a autonomia das leituras.
    As artes em processo, conectadas com seu tempo, são um desafio contínuo diante deste novo universo que ainda se encontra em ebulição. Tal qual o rio caudaloso que gestou as primeiras manifestações de vida (citando Richard Dawkins, em O Rio Que Saía do Éden), o novo caldo cultural infere e inclui as replicações de informação, as memórias culturais em constante dança de significados. Escrever, criticar, selecionar angulações, é ativar novas significações, replicar informações, que certamente potencializarão o discurso da crítica.
    Neste rio de cultura em evolução, pelo qual o jornalismo crítico também flui, o crítico pode exercitar sua própria arte com recursos múltiplos, desde que se disponha a usá-los. Neste caso, é imperioso tirar dos cadernos culturais o caráter de apêndice, de corpo separado do todo. Pensar em rede, conectar informações, tramar conceitos, elaborar novas configurações e percepções em cada resenha. Neste novo patamar de conversação, ganham artistas, jornalistas e público. O discurso entrecruzado de informações, o diálogo e a configuração dessas trocas poderão aproximar a mídia das intrincadas possibilidades que o entendimento do corpo que dança exige.

    Chris Galdino:

    E estamos falando somente de crítica no sentido mais convencional, o jornalístico. Mas se considerarmos que as curadorias de eventos, publicações, editais, também são uma forma prévia de crítica em dança, ainda temos muito sobre o que conversar. Sempre que o resultado de algum edital é divulgado, o coro de insatisfeitos espalha queixas, reivindica justificativas ou, lamentavelmente, volta-se contra os sortudos da vez.
    Mas ao invés de servir para estimular a competição desenfreada, o egocentrismo, e fortalecer o lado perverso do sistema de editais; isso deveria nos fazer refletir sobre os critérios de escolha das curadorias e comissões de seleção, principalmente, as de abrangência nacional. Quem são esses profissionais e a quem realmente eles representam? Garantir uma composição que privilegie a diversidade de linhas de pensamento-ação da dança produzida no Brasil é tão importante quanto agregar pessoas que conhecem realidades distintas (inclusive geograficamente) do cenário nacional. Entretanto, o que temos visto em muitos dos editais com esta abrangência, sejam públicos ou privados, é a predominância e até mesmo o "monopólio" de uma mesma vertente filosófico-ideológica da dança, o que fica notório na divulgação da lista de selecionados. Claro, não estamos falando dos editais que têm um recorte bem definido e nem de curadorias de festivais e eventos privados com o perfil declaradamente fechado em uma linha de trabalho, um discurso/formato de dança. O problema é quando há a defesa da diversidade e/ou da descentralização no discurso e, na prática, o contrário acontece. Em alguns casos, existe uma clara tentativa de camuflar, maquiar para parecer democrático e politicamente correto.
    Temos é que ficar atentos para não ver esse direcionamento continuar reproduzindo resultados similares, que deixam de fora grande parte das produções em dança, muitas vezes colocando em dúvida a qualidade dos trabalhos e projetos apresentados como forma de justificar as escolhas da comissão. Exigir a clareza dos critérios de avaliação de cada seleção destas é um papel que nos cabe, e do qual não podemos descuidar desde a abertura dos editais e não somente após a divulgação dos resultados.
    Mas isso já é assunto para aprofundar em outras conversas, porque certamente esse será um tema sempre em pauta.

    2 comentários:

    Cláudia Müller disse...

    Chris e Carlinhos,
    parabéns pela iniciativa! Temos (artistas, curadores, instituições, teóricos etc.) muito a comemorar por esta conversa fecunda iniciada no Interação e Conectividade e pela continuidade dela. Um novo entendimento da crítica é imprescindível e felicito a vocês pelo olhar criterioso e pela responsabilidade diante do que se propõe!!! Grande beijo. Cláudia Müller

    Chris Galdino disse...

    Obrigada, Claudia pelas palavras e pelas instigantes propostas "coreográficas". Vamos continuar essa conversa.

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